7 de dezembro de 2024

poderia começar com ares de denúncia e acusação, como quem enumera mentiras e reivindica verdades, adotando um tom de ressentimento ao qual não tenho direito e o qual por fim me rebaixaria pelo despropósito do que furiosamente senti. poderia não começar e deixar ao tempo a providência exata de todos os remédios, como se, uma vez coberto de silêncio o acontecimento fortuito de nos reencontrarmos, coubesse apenas remediar este presente impossível, o meu presente. entre as possibilidades de escrever, a despeito da confissão que beira à auto-humilhação e da ânsia latente por justiça, tomo a palavra para que ela possa, outra vez, dar forma à desordem, ainda que eu saiba que, diante da violência da angústia, ela se apequena e nunca alcança a enunciação definitiva. escrever: buscar sentido diante dos conflitos inconciliáveis entre afeto e representação. poderia não começar já, adiando o início dessa tentativa de escrita, fazendo dessa impossibilidade de começo de escrita a forma exata e irônica de expressão de nossa não relação. este parágrafo é um falso começo, assim como nós. todos os começos são, em alguma medida, falsos.

estávamos em busca de uma descarga provisória às nossas volúpias. por acaso tomei coragem para elogiar suas meias, preencher o assunto com a briga dos meus vizinhos, tentando um caminho àquilo que me atraía. uma vez que nos reconhecemos: espanto, euforia, encanto, agonia. arranjamos um reencontro com as expectativas pouco pensadas ou assentadas: a mim, o contexto sexual geral era inibido pelo desejo de acertar as contas com o passado, tarefa que me dava em nome dos mais de dez anos sem contato com você. não me movia por um sentimento consciente de vingança, desses que tomam a forma de uma ideia vaga, porém importante, de certo mal dirigido a mim ou a você. me dispus a ir ao seu encontro (com angústia e tremor) pela oportunidade de dizer aquilo que não havia sido dito a tempo, acreditando que fosse possível uma reparação qualquer frente a tanta ausência e afastamento. não pude existir ileso de um grande amor adolescente que se interrompeu de forma descuidada. foram mais de dez anos, o que significa dizer que são mais de dez anos vasculhando sentidos em fatos já muito falseados pela imaginação, pela memória, pela vida. fomos capazes de rememorar alguns acontecimentos juntos (eu pedindo perdão por lembrar), experiências comuns nossas no passado, o que me serviu por uma fração feliz de segundos de ilusão e comunhão. todos os fatos, assim como os começos, também são, em alguma medida, falsos.

foram mais de dez anos inicialmente superpostos na sua proposta de "eu quero te ver, preciso conversar", "eu vou aonde você quiser". diante de tamanha abertura, recusar, pelo alvoroço do mal-estar, era uma possibilidade que valia como refúgio e consolo, o que, no fim das contas, se prova impossível. culpo a minha incapacidade de domesticar minha agitação diante da surpresa tão inesperada, mas também meu receio ou desejo secreto de que esse reencontro um dia acontecesse. pessoalmente, resisti ao abraço em que nos cumprimentamos: relembrança: rosto roçando barba, seu gosto por perfumes pontiagudos, o conforto do seus braços passados às minhas costas, quadris levemente pressionados. um abraço... difícil sobreviver à tensão que surgia à medida que nos avaliávamos silenciosamente, apesar dessa excitação erótica interditada pela própria circunstância. tentei preencher meus turnos de fala buscando suspender minha gravidade típica, dando notícias em tom de fofoca e gracejando muito diante das intimidades, o que pode ter surpreendido você pelo artifício pouco espontâneo, a leviandade forjada. eu, muito ingênuo, tentava sublinhar minhas próprias palavras para que algo não pudesse escapar do meu gesto enunciativo, como um velejador busca algum controle de seu barco furado em meio à tempestade. diante da sua necessidade de conversar, o tom terno da sua voz me impedia de escutar com clareza, dados o pavor e a incredulidade gerais. a verdadeira novidade era a irrealidade, ou seja, a possibilidade de reaver contato, reconhecer um ao outro ("sem mediações, outros tempos"). foram mais de dez anos.

apesar da atmosfera tensa pela premissa do reencontro, incrédula pela própria realidade inusitada e artificial pelo nosso contato sem jeito, tudo me pondo quase aos vômitos, como antes, compramos sanduíche, criticamos vitrines e andamos pela cidade às vésperas de uma madrugada muito fria (me arrependo de não ter cedido meu casaco ou ousado algum calor). apesar do curtíssimo tempo passado juntos, estive gravemente feliz em sua companhia. nos despedimos com convites a visitas, viagens à sua cidade, promessas de conhecer a padaria perto da sua casa. sem mediações, a abertura e as expectativas ("tem tanta coisa que ainda preciso contar e quero saber... e vc tá tão bonito!") trouxeram dias delirantes e vertiginosos diante de um passado sem alegrias, um presente sem presenças e um futuro sem garantias. acreditei por breves meses que os outros tempos seriam outros, não sabendo com clareza do risco que seria reaver uma relação que me foi tão dolorosa, desde o nosso afastamento ou mesmo antes. constrangimento maior foi descobrir que, depois de mais de dez anos, o desejo de consumar aquilo que havia ficado pendente na adolescência subsistia em mim. você: uma imagem fixada nesse movimento repetitivo de queda em câmera lenta, sua perda simultaneamente rejeitada e restituída à medida da negação e da afirmação da dor.

retornar ao canal em que nos reencontramos era sustentar um meio de comunicação imprudente, suscetível a desconfianças e mágoas desnecessárias. passado o tempo, o bloqueio preventivo. passado o tempo, seu novo perfil na região. como um golpe, o novo contexto: o que era vivido como acontecimento foi transformado em espreitas culposas diante de uma sexualidade imaginada como a mais promíscua e libertina possível. o suposto cuidado em não manter contato por ali foi substituído por um sentimento de perda de confiança, tão incipiente e, portanto, precária: de repente, sua mentira ingênua é descoberta unilateralmente por mim; de repente, minha mentira profunda é prolongada pelo acesso ao que seria para mim uma vitrine imóvel de obsessões, uma série ritualizada de exercícios de sofrimento. dada a estrela, noite escura: nova foto no perfil; mudanças na localização; cálculos de minutos, horas e dias entre o último acesso; ideias impalpáveis de outros homens. sem mediações, a velha cena se repetia: tornado mais uma vez vítima e agressor de mim mesmo, estava diante dos efeitos mórbidos de uma dissolução erótica, em que o desejo se confunde com as formas mais escusas de gozo e os corpos se tornam espectros deformados do que deveria ser algum suporte de alteridade. comentando aquele ensaio espinhento sobre a solidão que compartilhei, você havia me sintetizado: "a gente gosta de sofrer".

a confissão aberta do meu interesse em estar com você pretendeu criar a oportunidade para transparências e franquezas, sem os ruídos da incerteza ou da dúvida quanto aos destinos que poderíamos ter. reconheço ser muito arriscado da minha parte ousar tamanha exposição diante desse acontecimento em que, avaliando retrospectivamente, eu talvez não tenha conseguido modular o tom ou encontrar o momento certo de falar e calar. comentários dispensáveis tornaram-se acidentalmente provocações irônicas, respostas prolixas foram dadas a perguntas que não foram feitas, meias palavras para nenhum bom entendedor. me conforto acreditando que fracassei diante de uma situação em que eram exigidas perícia e agudeza para me comunicar veladamente bem, de modo amistoso e sedutor, sem me privar a chance de um próximo passo mais ofertante e lascivo; a verdade, talvez mais dura, é que, por mais ponderado e eloquente eu pudesse ter sido, não haveria bom desfecho qualquer fosse o cenário. ainda assim, racionalizo: mal-entendidos fundamentais da linguagem ou erro de cálculo entre a pertinência e a (falta de) intimidade? minha sinceridade não deveria servir de pretextos para não ditos de sua parte; esperava alguma reciprocidade minimamente à altura, nem que fosse para uma recusa (qualquer recusa), seca ou úmida, gentil ou cortante. você opta pelo descuido, o que é pouco inédito. cada vez que seu silêncio me alcança, seu desinteresse se faz ouvir de forma mais nítida. minha insistência em escrever também me produz uma vergonha que lamento sentir: com alguma honestidade consigo mesmo, você me liberaria desses ecos. poucas palavras serviriam, um "não" serviria. qualquer recusa.

retomar contato por meio do canal haveria de ser ainda uma surpresa, não fosse o encaminhamento dos desafetos e ressentimentos mobilizados por esse desrecomeço. sinto que agi de má-fé com você ao ousar alguma resposta à sua tentativa de conversa comigo, uma vez eu não me apresentar frontalmente, rosto posto. dizer-se "mais preparado" diante da minha aparição, eu vibrando pela oportunidade de alguma palavra após ter perdido o timing do contato pregresso, uma voz que invento para pretender resumir uma situação decorrida por uma escolha sua de não responder e, portanto, sumir. a surpresa é seu gesto de trazer para si a responsabilidade de ter entendido mal minha mensagem, uma consideração tardia, obviamente contingente ao constrangimento de falar comigo, o indesejado. a pouca capacidade de me administrar frente a algo que me parecia decisivo não se reatualizava: o que me cabia era ler a situação como uma despedida às avessas, em que novamente se prometia "conversar melhor" num "encontro na próxima vinda", sabendo de antemão que nada prevaleceria mais do que o esquecimento tácito, a desobrigação indiscreta, o bloqueio preventivo. dois enganos fazem dois enganadores?

ao fim e ao cabo, o que me fica é esse sentimento muito doloroso de não ser merecedor da alegria da rejeição, em que constato que não valho a palavra ou a amizade, situando-me como alguém desimportante apesar do passado e descartável como mais um qualquer. o penoso não é lidar com essa suscetibilidade ao desencontro e à mágoa que os nossos critérios impõem a cada relação, mas sim com a pouca honestidade em relação ao outro, o descaso com a recusa libertadora, aquela que generosamente delimita e carinhosamente situa os afetos em sua devida dimensão. na ausência da dádiva, os fantasmas se agigantam, o desamparo beira o insuportável, quedas anteriores se repetem e se acumulam à nova queda, e uma crise evitável se faz como consequência de algum capricho inconsciente seu (espero que, apesar de egoísta, pouco consciente de si). meu trunfo: a fatalidade está logo ali: no dia do caçador, você inevitavelmente será a caça. apesar dos votos ressentidos, vive-se à pele, e a solidão, apesar de serem muitos os homens possíveis, é nossa companhia perene. salvo o destino, haja sorte para nós na empresa amorosa. sigamos em paz, mas armados. sem o azar de nos redesconhecermos novamente.