16 de dezembro de 2024

"se fosse uma pessoa, deveria
estar fazendo hemodiálise" dadas
as más notícias do prognóstico
a obviedade se prenunciando
enquanto os rins lentamente
se tornavam esponjas duras e fibrosas

magreza, letargia, perda de apetite, halitose
desidratação, vômito, espasmo, confusão
pupilas dilatadas, bigodes atrapalhados
orelhas baixas, focinho esbranquiçado
expressando a seu modo o mal-estar
sem efeitos os nossos cuidados

(se o sentido de uma doença é o sentido
que se produz a partir das alterações da
materialidade do corpo e das significações
possíveis de um conjunto de discursos no
qual se situa o doente, como poderia
narrar seu sofrimento além da objetividade?)








resistir ao que não se pode resistir
fracassado o adiamento possível
chegada a certeza da hora incerta
sabedoria pacífica, lição perene:
resguardar-se em sua intimidade
dar-se dignidade e discrição

à noite descendo as escadas
nenhuma gravidade a mais
pela última vez conosco
fugindo do banho improvisado
sem necessidade de despedidas
ou dramas ao que lhe vinha natural

pela manhã achar um espanto
enroscado nas madeiras do sofá
em segredo o desejo por fim realizado
a morte apresentada para o bem
contra a vaidade de alongar indefinidamente
os dias de dezoito anos, vividos um a um








caixa-castelo de papelão do melão rei
"sou saboroso", "estou maduro"
toalha-mortalha com motivos florais
em vermelho, rosa, laranja, amarelo
tronco retorcido, boca espumosa
olhos revirados, músculos rígidos

(no cemitério do canil municipal
a cerca servindo de delimitação e ironia
em negativo ao nível do chão uma vala
comum por serem muitos animais
contaminada por não serem pessoas
amontoados, revolvidos, despedaçados

numa grande massa de barro e vísceras
moscas disputam com urubus a decomposição
enquanto um córrego logo ali
docílimo em sua ingênua correnteza
se embebe de caldos cadavéricos
tornando-se um inferno líquido a céu aberto)








assento do sofá tornado monumento
nos cantos do jardim nenhum cochilo
debaixo do carro preocupação alguma
montinhos de cobertores são nadas
tubo peluciado vazio no primeiro andar
junto ao pé da mesa se encontra o chão

pesadelos antes de dormir:
pelos endurecidos de terra e sangue
corpo exposto ao sol e à chuva
rosto roído por vermes
ossos pontiagudos à mostra
miados profundos sem socorro

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preto com branco! ô, curioso!
gatão! cadê o vovô? cisquinho!
psh-psh-psh-psh-psh-psh-psh
cadê o gato? bartô? bar-to-zi-nho?
onde meu companheirinho?
psh-psh-psh-psh-psh-psh-psh