26 de fevereiro de 2014

o primeiro homem, ao ceder de seu fardo, foi tornado o santo.
o segundo homem, por esperar pelo milagre, fez a si o palhaço.
o terceiro homem, em contar uma versão, era-lhe o próprio.

22 de fevereiro de 2014

(estávamos todos sentados em círculo. era um dia qualquer, em que cada aluno lia uma frase do texto - a história de um sapo que foi a uma festa no céu. iniciados os turnos, eu acompanhava e media o desempenho dos outros, orgulhoso e inseguro nas vésperas do meu momento. o professor coordenava o curso das falas, enquanto eu secretamente também o fazia. mas temia e rezava com violência para apenas que não me fosse dada a interrogação. não sabia entonar a voz duvidosa. todos os sinais gráficos me eram amigos, menos o da desconfiança. o professor era um homem rígido, sem pudor para corrigir de maneira amável. era um bronco. na medida em que meu turno se aproximava, horror: não estava pronto para ser testado na incerteza que um ponto-de-interrogação encena, que o acaso dos justos não se manifestasse em público, que o acaso pudesse esperar para me expiar em um ambiente de conforto particular. não pôde. o deus não atendeu ao meu desespero, precipitando o desgosto pela fé de uma vida inteira ao instante em que eu era confrontado com a própria ignorância. de tão insolente por julgar em silêncio, seria o alvo dos olhares e risos mais recriminantes."a fes-ta fo-i u-ma di-ver-são, mas to-das as a-ves se per-gun-ta-vam: o sa-po che-gou a-qui." foi o que eu li. o professor, destro nas humilhações, "o sapo chegou aqui?" com uma cara arrogante de quem aguarda resposta. eu, em transe com toda a miséria que me foi imposta, arranjei no riso um alívio circunstancial e repeti ao meu modo. e o pior aconteceu: o professor interrompeu seu prazer de torturador e me trouxe à razão incontestável da realidade que não consegui escapar: "você está rindo de quê? não tem nenhum palhaço aqui." todos riram de mim, inclusive eu, que deveria ter me amado nesta provação dos meus crimes de criança. assustado, ofendido em minha humanidade que acabara de nascer, suspenso em pouca idade, só pude retrucar com a sinceridade cabível: que não estava no circo, não, senhor, ria porque não sabia ler a interrogação. mais valeria naquela situação uma mentira do que o relato puro da minha fraqueza. foi como entregar o ouro. o homem explodiu, atacou minha ingênua iniciação no mundo, os nomes mais perfurantes do que qualquer rasgo na superfície do corpo. pivete. moleque. fedelho. pirralho. burro. estúpido. analfabeto. acalmado, se pôs a se perseguir por meio de mim, "acha que eu sou palhaço, é? acha? responde!". eu era pura derrota. não emitia som algum. ele, não satisfeito mas ardil, abriu mão de sua proposta pedagógica: pulou minha oportunidade de entonar o questionamento do sapo - que acabei amargo engolindo -, passou minha frase ao aluno seguinte e sorriu um olhar triunfante se dirigindo a mim ao ouvir um "o sa-po che-gou a-qui?". por vingança, me tornei o melhor aluno da turma. contra o acaso, nada pude.)

18 de fevereiro de 2014

vóz v

a programação da televisão: ando afastada das novelas. gostava daquela última, do tipo mocinha apaixonada pelo galã. mas as de hoje, não suporto. ainda nem deu a hora de eu dormir e já tem beijo na boca, gente pelada, tiro, sangue, gritaria, palavrão. até homem com homem! me deu um nojo. estou muito velha para esse mundo. só ando vendo o canal da minha reza, ponho até copo d'água pra benzer na hora da missa das sete. assisto ao terço bizantino depois do almoço, a novena à tarde, à noite, jornal. jornal também não anda compensando muito, só tragédia, desgraça. a vida já é sofrida, não preciso de mais. ninguém precisa. uma vez vi uma coisa interessante, até fiquei curiosa pra saber se era verdade. no jornal, estava passando uma reportagem sobre as águas aqui de minas, mostrando rio, lago, cachoeira, córrego, mar, barragem. aí veio uma cena com um monte de água vindo na tela, como se fosse sair pela tv. tomei até um susto, estava meio cochilando, meio acordada. será que aqui tem tanta água assim? minas não tem mar, só tem céu. esses dias chegou correspondência da companhia de água dizendo que ia faltar durante algumas horas, manutenção não sei o quê, não entendi muito bem. e aí, na televisão, aquele mundo de água. como é que pode? faltar água em casa e eu quase afogando sentada na sala?

15 de fevereiro de 2014

é o estrangeiro convocado a proferimentos e declarações e anunciados e constatações a respeito de sua substância tornando-se enfim sujeito ou objeto ou pessoa ou animal ou deus entre o que é chamado de comunhão de nossas vidas então dizendo

meu nome secreto é convidado se venho sozinho a este posto é porque me permito só já que as contingências são próprias e também próprio me sou banco o rosto que tenho ponho-o à frente de qualquer lesão que o mundo me desfira aguardo pelo murro porque também quero dá-lo

meu signo é siderado pelos piores cálculos mas conto com o bom trato dos interpretantes em sua apreensão material do que mostro como objeto representado se aqui abro em flor meu desejo é para ter como garantia minha própria insatisfação

meu corpo não registra memórias fulgurantes de um trauma fantasiado se tenho os pontos específicos é porque me permito dentro das confluências do destino a portar esta pele este casco este metal que faço máscara disforme para existir dentre nós podendo então chamar o sintoma de disjunção necessária à existência.

13 de fevereiro de 2014

moça do telemarketing,
a vida costuma não ponderar o peso da mão quando nos bate. este labirinto que percorremos descalços, esta luta desarmada que temos que travar com os leões: precisamos de esperança. o cotidiano é guiado por um deus também cansado, enquanto que nos finais de semanas temos de nos linchar em um hábito autolesivo qualquer para poder seguir mais um pouco, sem promessa alguma de descanso. mas escrevo em nome de um pedido sincero. peço a você que perdoe o mundo. não tome a mim como alguém especialmente designado neste acaso dos números telefônicos que rondam a sua lista triste de clientes não aborrecidos. recuso compadecido este novo plano de cartões de crédito decorrente da parceria da empresa telefônica x com o banco y, mesmo sabendo que com este cartão o valor de minhas compras seria convertido em pontos que poderiam ser trocados por milhas de viagens solitárias ou celulares igualmente solitários. sem falar nos juros baixíssimos, quase próximos à nossa tristeza. por tanta vantagem assim, não posso amar por menos. se interrompo o seu discurso monotônico gentilmente para expor minha estúpida postura, é para poupar seu tempo e sua voz, meu tempo e minha voz. a indignidade do seu trabalho confrontada a seco pela minha agressiva misericórdia. perdoe. a mim e ao mundo. a esperança inesperada ainda irá nos mostrar que o dia é bonito, que a coisa tem jeito. por agora, só tenho a oferecer um pouco de ombro nesta dureza. meus votos: que o acaso lhe permita um ouvido atento, um possível número a menos em suas cotas diárias de venda. que a inesperança não nos mate antes do tempo de morrer. que o deus durma para que, enfim, possamos dormir também.
de seu cliente e consumido consumidor,
um abraço.

11 de fevereiro de 2014

estudo sobre sapatos femininos

a miscelânea luxuriosa de humores em nome de cortes, cores, texturas, alturas. a exposição pensada de um erotismo sucumbido à sacralidade de um altar vazio. o prazer do andar e o registro sonoro ao se aproximar de algum ambiente. o prenúncio da mulher. o cortejo com o enigma do mundo reduzido a um par. a tensão íntima entre as paredes do sapato e a pele. o sofrimento voluntário em nome do belo. a resignação aceita por um conforto ortopédico. o subseqüente alívio de desmascarar a fêmea. a humilhação secreta do confronto com um calçado mais fálico em uma disputa atestada de “quem falta mais”. a loucura da vaidade. a curvatura do pé como medida de feminilidade. o apelo das unhas vermelhas.

6 de fevereiro de 2014

folie, adieux

a quem sublinha bem o fraseado dos pensamentos, resta apenas morar no intervalo de uma letra à outra.

2 de fevereiro de 2014

algumas frugalidades:

chupar uma laranja extremamente doce e cheia de sucos.
dormir depois do almoço em um quarto levemente escurecido.
comer pão-de-queijo quente.
escovar os dentes e beber água mineral em seguida.
tomar banho gelado e vestir roupas limpas e frescas em dias quentes.
cortar as unhas das mãos e dos pés.
alongar as costas depois de muito tempo sentado.
reler um bom conto.
acordar com o calor e a luz do sol no rosto.
cheirar a grama recém-cortada.
dar cabo aos gases do corpo sem ter de se preocupar.
conseguir fazer algo que era julgado difícil de maneira fácil e simples.
ter gatos como companhia enquanto se faz alguma atividade doméstica.
cheirar pedra quente.
nadar em uma piscina aquecida em dias frios.
apagar as luzes antes de se deitar.