29 de março de 2014

vóz vi

com o entorpecimento causado pela velhice, os que a cercavam se davam a acompanhar a decadência. dizia sombria: ainda não morri. exijo respeito aos meus cabelos brancos - até parei de pintar. não preciso mais fingir vaidade. dizem que ando desbocada. a idade me autoriza. não gosto do jeito que me tratam. todas elas. minhas filhas e as empregadas, as patroinhas. vêm com agrados e boas intenções ao gosto de não sei quem. talvez ao delas. não me perguntam como eu quero ser tratada. com as empregadas: tenho de comer na hora delas, banho na hora delas, tv na hora delas. até as minhas preces ganham ares de permissão, como se eu não fosse dona da minha própria casa. se digo que não estou gostando, sou cruel; se me calo, sou tristinha, apática. com as filhas: se reclamo dos maus tratos, ofendo como se cobrasse a eterna dívida pelo tempo que dediquei na criação. não peço que venham fazer o serviço péssimo da enfermeira e da empregada. peço mais carinho. os remédios não faltam, mas tenho de beber com a água que foi estupidamente servida, o copo entregue com má vontade. o chão da casa só fica limpo se é passado o pano sob meus olhos (e chorava um pouco de indignação). a comida, ganho humilhada, e tenho a marca no céu da boca da colher feita por aquela preta bruta que fiz ir embora de tão espaçosa. não é porque seu vô morreu que essa casa perdeu o prumo, que eu tenho que definhar sem dignidade. só peço a deus para dar cabo às discórdias, as minhas, as da família. ficar velha e ainda ter de me preocupar com pecados... difícil. do tanto que já rezei nessa vida, minha nossa senhora, se eu não for para o céu, ninguém vai.

25 de março de 2014

sua vez em voga, véspera de qualquer fala que decifre os árduos raciocínios frente aos íntimos afetos, o homem-houvido posiciona corpo e argumento para se demorar em suas reflexões anti-circulares, sofrendo da retórica mais refinada que o jargão de seu domínio lhe permite. a esperar por um olho que brilhe em sua revista dos sentidos que produz por palavras e impressões sensíveis. transcorre digressões atestadas pelo ou que denomina de controle experimental ou ao deus da intuição imediata do mundo. em seus deslizes espinhais, ajusta os ombros, rearranja os pulmões, aloja os rubores entre o nariz e as orelhas. constrange-se ao ser elogiado por seus dotes seminaristas. contrange-se ao ser criticado por sua objetividade científica frente ao mais desalinhado caos. cede e derrama em gotas suas pequenas desesperanças sobre as relações - diz que está apaixonado por uma imagem ilusória de si e dos outros -, aguardando contra-ataque e bom amparo. rio como quem se resguarda por saber que sou também outra estátua de sal, mas em possibilidade. marco meu destino: olho para trás: decido que não, apenas não, mas vacilante: não.

21 de março de 2014

do punho aos pés vestida de negro, pele queimada de sol, cabelos em cachos brancos, a rainha e suas sacolas regem o mundo. a julgar pelo clamor de seus olhos, está cansada. atravessando lenta uma rua à outra, demorando-se em frente a vitrines comerciais em busca de uma decisão razoável entre comprar a morte ou vender a vida. passeando as suas sacolas carregadas de vozes e ninharias seriadas, alimenta lendas e rumores: ou viúva apaixonada por seu falecido homem, que era riquíssimo à sua custa e lhe tomou um por um os bens; ou professora aposentada do instituto de artes da universidade que trocou a academia por uma eterna performance; ou mãe abandonada pelos filhos que hoje a sustentam por um império de vergonha moral; ou mulher de família proveniente de uma grande depressão financeira que encontrou na rua uma casa; ou simplesmente a rainha destes terrenos, mulher sonhada por dom bosco, que pisa calçada com seus sapatos trocados a deixar rastros de curupira, guardando em silêncio o segredo da humanidade: que a loucura inflamada e a razão articulada são avesso e direito da mesma ordem.

13 de março de 2014

estudo sobre brincos femininos

o furo aceito das orelhas. a rusticidade das pedras. o obscurantismo dos minérios preciosos. o formato correspondente à circunstância. a coerência do arranjo entre o pescoço e o cabelo. a simetria sem propósito dos movimentos. o enquadramento. o marco da iniciação ao universo. as intolerâncias do corpo. a nudez. o desamparo ao perder um dos pares. o mundo secreto das tarraxas. o desapego forçado. o perigo ameaçador das argolas grandes. os sacrifícios pela exuberância. os de pérolas.

8 de março de 2014

exobjeto

se o perco, já não preciso de sua presença. se o tenho, não encontro correspondente no mundo. se o amaldiçoo, por amor que falo. se o prolongo, apesar da sequência guardo a condição de despojo. se o violento, seu rosto também me concerne. se o fabrico, porque o novo me resta só. se o marco, é meu traço de impermanência no outro.

6 de março de 2014

hermeneuta afetado traduzindo i will wade out de e.e.cummings

antes de se afirmar que a tradução é traição, é bom considerar o compromisso estabelecido entre as partes deste triângulo amoroso. tomemos aqui cada nome abstrato como um nome designador próprio. se o tradutor desliza por entre duas ou mais línguas (a matriz (não chamarei de mãe para não adentrar ao campo edípico) e a(s) amante(s)), sua apreensão do mundo não corresponde diretamente às ideologias e poéticas que cabem a cada uma, isto é óbvio. seu ofício, no entanto, não se assemelha ao do discurso do fiel monogâmico: não é válido aqui esconder os fatos de suas mulheres (ou seus homens) para que guardem uma desconfiança mútua, uma a esperar pelo lugar da primeira, outra de desesperar pela possibilidade de segunda, uma terceira, se houver, na eminência de emergência, etc. o tradutor, antes de ser apaixonado marido e pecaminoso amante, é (ou deve ser) um homem honesto, destes que reconhecem suas virtudes e seus vícios e se comovem a ponto do choro. suas mulheres ou seus homens deverão se interceptar enquanto ele se põe ao trabalho de, se me cabe o perdão do leitor pela redução, verter de uma língua à outra, as salivas com que se engasga ao tentar mais fala do que fôlego. o tradutor é, para dizer de pronto, um silente cúmplice, um mímico discreto. um mudo mal-articulado. se seu produto se aproxima do artesanato, é por saber modelar, a várias mãos, o corpo de sua obra alucinada, que, mesmo não tendo fé ao original, é recoberta pelo brilho viscoso próprio da réplica inaugural (não queremos ofender os plagiários: estes são os verdadeiros cornos resignados). vamos, então, à empreitada masturbatória:

vou ao vau
                  até que minhas coxas rocem como flores incandescentes
Vou suster o sol em minha boca
e saltar ao ar maduro
                                   Plena
                                              d'olhos fechados
para lançar contr'a escuridão
                                   das dobras dormentes do meu corpo
Que entrem os dedos de sutil mestria
com castidade de sirenas
                                       Irei preencher o mistério
                                       de minha carnadura
Vou ascender
                   Depois de milanos
flores
labiais
                   E cravar meus dentes no prateado da lua

em prosa:
tendo o sexo diante de mim, à margem estou e à outra me dirijo. rota corrente, pés oscilantes no leito arenoso, calor do piso incerto de flores. mergulho os dedos em mim. abro os olhos, abro a boca. vejo, engulo. cheio. fecho os olhos. descubro meu corpo no negrume inabordado das águas. que me abracem os monstros da morada doce com seus gestos gentis. dúvida: assim tenho a unidade do mentecorpo? assim tenho a unidade do mentecorpo: depois, no tempo das flores labiais, vou com dentes emergir em águas rumo ao luar que incide na superfície plana do gozo.

2 de março de 2014

co-sideração

o amor está para o desenlace assim como estão os objetos concretos para a sua metonímia.