"se fosse uma pessoa, deveria
estar fazendo hemodiálise" dadas
as más notícias do prognóstico
a obviedade se prenunciando
enquanto os rins lentamente
se tornavam esponjas duras e fibrosas
magreza, letargia, perda de apetite, halitose
desidratação, vômito, espasmo, confusão
pupilas dilatadas, bigodes atrapalhados
orelhas baixas, focinho esbranquiçado
expressando a seu modo o mal-estar
sem efeitos os nossos cuidados
(se o sentido de uma doença é o sentido
que se produz a partir das alterações da
materialidade do corpo e das significações
possíveis de um conjunto de discursos no
qual se situa o doente, como poderia
narrar seu sofrimento além da objetividade?)
resistir ao que não se pode resistir
fracassado o adiamento possível
chegada a certeza da hora incerta
sabedoria pacífica, lição perene:
resguardar-se em sua intimidade
dar-se dignidade e discrição
à noite descendo as escadas
nenhuma gravidade a mais
pela última vez conosco
fugindo do banho improvisado
sem necessidade de despedidas
ou dramas ao que lhe vinha natural
pela manhã achar um espanto
enroscado nas madeiras do sofá
em segredo o desejo por fim realizado
a morte apresentada para o bem
contra a vaidade de alongar indefinidamente
os dias de dezoito anos, vividos um a um
caixa-castelo de papelão do melão rei
"sou saboroso", "estou maduro"
toalha-mortalha com motivos florais
em vermelho, rosa, laranja, amarelo
tronco retorcido, boca espumosa
olhos revirados, músculos rígidos
(no cemitério do canil municipal
a cerca servindo de delimitação e ironia
em negativo ao nível do chão uma vala
comum por serem muitos animais
contaminada por não serem pessoas
amontoados, revolvidos, despedaçados
numa grande massa de barro e vísceras
moscas disputam com urubus a decomposição
enquanto um córrego logo ali
docílimo em sua ingênua correnteza
se embebe de caldos cadavéricos
tornando-se um inferno líquido a céu aberto)
assento do sofá tornado monumento
nos cantos do jardim nenhum cochilo
debaixo do carro preocupação alguma
montinhos de cobertores são nadas
tubo peluciado vazio no primeiro andar
junto ao pé da mesa se encontra o chão
pesadelos antes de dormir:
pelos endurecidos de terra e sangue
corpo exposto ao sol e à chuva
rosto roído por vermes
ossos pontiagudos à mostra
miados profundos sem socorro
[.......................................................]
preto com branco! ô, curioso!
gatão! cadê o vovô? cisquinho!
psh-psh-psh-psh-psh-psh-psh
cadê o gato? bartô? bar-to-zi-nho?
onde meu companheirinho?
psh-psh-psh-psh-psh-psh-psh
16 de dezembro de 2024
7 de dezembro de 2024
poderia começar com ares de denúncia e acusação, como quem enumera mentiras e reivindica verdades, adotando um tom de ressentimento ao qual não tenho direito e o qual por fim me rebaixaria pelo despropósito do que furiosamente senti. poderia não começar e deixar ao tempo a providência exata de todos os remédios, como se, uma vez coberto de silêncio o acontecimento fortuito de nos reencontrarmos, coubesse apenas remediar este presente impossível, o meu presente. entre as possibilidades de escrever, a despeito da confissão que beira à auto-humilhação e da ânsia latente por justiça, tomo a palavra para que ela possa, outra vez, dar forma à desordem, ainda que eu saiba que, diante da violência da angústia, ela se apequena e nunca alcança a enunciação definitiva. escrever: buscar sentido diante dos conflitos inconciliáveis entre afeto e representação. poderia não começar já, adiando o início dessa tentativa de escrita, fazendo dessa impossibilidade de começo de escrita a forma exata e irônica de expressão de nossa não relação. este parágrafo é um falso começo, assim como nós. todos os começos são, em alguma medida, falsos.
estávamos em busca de uma descarga provisória às nossas volúpias. por acaso tomei coragem para elogiar suas meias, preencher o assunto com a briga dos meus vizinhos, tentando um caminho àquilo que me atraía. uma vez que nos reconhecemos: espanto, euforia, encanto, agonia. arranjamos um reencontro com as expectativas pouco pensadas ou assentadas: a mim, o contexto sexual geral era inibido pelo desejo de acertar as contas com o passado, tarefa que me dava em nome dos mais de dez anos sem contato com você. não me movia por um sentimento consciente de vingança, desses que tomam a forma de uma ideia vaga, porém importante, de certo mal dirigido a mim ou a você. me dispus a ir ao seu encontro (com angústia e tremor) pela oportunidade de dizer aquilo que não havia sido dito a tempo, acreditando que fosse possível uma reparação qualquer frente a tanta ausência e afastamento. não pude existir ileso de um grande amor adolescente que se interrompeu de forma descuidada. foram mais de dez anos, o que significa dizer que são mais de dez anos vasculhando sentidos em fatos já muito falseados pela imaginação, pela memória, pela vida. fomos capazes de rememorar alguns acontecimentos juntos (eu pedindo perdão por lembrar), experiências comuns nossas no passado, o que me serviu por uma fração feliz de segundos de ilusão e comunhão. todos os fatos, assim como os começos, também são, em alguma medida, falsos.
foram mais de dez anos inicialmente superpostos na sua proposta de "eu quero te ver, preciso conversar", "eu vou aonde você quiser". diante de tamanha abertura, recusar, pelo alvoroço do mal-estar, era uma possibilidade que valia como refúgio e consolo, o que, no fim das contas, se prova impossível. culpo a minha incapacidade de domesticar minha agitação diante da surpresa tão inesperada, mas também meu receio ou desejo secreto de que esse reencontro um dia acontecesse. pessoalmente, resisti ao abraço em que nos cumprimentamos: relembrança: rosto roçando barba, seu gosto por perfumes pontiagudos, o conforto do seus braços passados às minhas costas, quadris levemente pressionados. um abraço... difícil sobreviver à tensão que surgia à medida que nos avaliávamos silenciosamente, apesar dessa excitação erótica interditada pela própria circunstância. tentei preencher meus turnos de fala buscando suspender minha gravidade típica, dando notícias em tom de fofoca e gracejando muito diante das intimidades, o que pode ter surpreendido você pelo artifício pouco espontâneo, a leviandade forjada. eu, muito ingênuo, tentava sublinhar minhas próprias palavras para que algo não pudesse escapar do meu gesto enunciativo, como um velejador busca algum controle de seu barco furado em meio à tempestade. diante da sua necessidade de conversar, o tom terno da sua voz me impedia de escutar com clareza, dados o pavor e a incredulidade gerais. a verdadeira novidade era a irrealidade, ou seja, a possibilidade de reaver contato, reconhecer um ao outro ("sem mediações, outros tempos"). foram mais de dez anos.
apesar da atmosfera tensa pela premissa do reencontro, incrédula pela própria realidade inusitada e artificial pelo nosso contato sem jeito, tudo me pondo quase aos vômitos, como antes, compramos sanduíche, criticamos vitrines e andamos pela cidade às vésperas de uma madrugada muito fria (me arrependo de não ter cedido meu casaco ou ousado algum calor). apesar do curtíssimo tempo passado juntos, estive gravemente feliz em sua companhia. nos despedimos com convites a visitas, viagens à sua cidade, promessas de conhecer a padaria perto da sua casa. sem mediações, a abertura e as expectativas ("tem tanta coisa que ainda preciso contar e quero saber... e vc tá tão bonito!") trouxeram dias delirantes e vertiginosos diante de um passado sem alegrias, um presente sem presenças e um futuro sem garantias. acreditei por breves meses que os outros tempos seriam outros, não sabendo com clareza do risco que seria reaver uma relação que me foi tão dolorosa, desde o nosso afastamento ou mesmo antes. constrangimento maior foi descobrir que, depois de mais de dez anos, o desejo de consumar aquilo que havia ficado pendente na adolescência subsistia em mim. você: uma imagem fixada nesse movimento repetitivo de queda em câmera lenta, sua perda simultaneamente rejeitada e restituída à medida da negação e da afirmação da dor.
retornar ao canal em que nos reencontramos era sustentar um meio de comunicação imprudente, suscetível a desconfianças e mágoas desnecessárias. passado o tempo, o bloqueio preventivo. passado o tempo, seu novo perfil na região. como um golpe, o novo contexto: o que era vivido como acontecimento foi transformado em espreitas culposas diante de uma sexualidade imaginada como a mais promíscua e libertina possível. o suposto cuidado em não manter contato por ali foi substituído por um sentimento de perda de confiança, tão incipiente e, portanto, precária: de repente, sua mentira ingênua é descoberta unilateralmente por mim; de repente, minha mentira profunda é prolongada pelo acesso ao que seria para mim uma vitrine imóvel de obsessões, uma série ritualizada de exercícios de sofrimento. dada a estrela, noite escura: nova foto no perfil; mudanças na localização; cálculos de minutos, horas e dias entre o último acesso; ideias impalpáveis de outros homens. sem mediações, a velha cena se repetia: tornado mais uma vez vítima e agressor de mim mesmo, estava diante dos efeitos mórbidos de uma dissolução erótica, em que o desejo se confunde com as formas mais escusas de gozo e os corpos se tornam espectros deformados do que deveria ser algum suporte de alteridade. comentando aquele ensaio espinhento sobre a solidão que compartilhei, você havia me sintetizado: "a gente gosta de sofrer".
a confissão aberta do meu interesse em estar com você pretendeu criar a oportunidade para transparências e franquezas, sem os ruídos da incerteza ou da dúvida quanto aos destinos que poderíamos ter. reconheço ser muito arriscado da minha parte ousar tamanha exposição diante desse acontecimento em que, avaliando retrospectivamente, eu talvez não tenha conseguido modular o tom ou encontrar o momento certo de falar e calar. comentários dispensáveis tornaram-se acidentalmente provocações irônicas, respostas prolixas foram dadas a perguntas que não foram feitas, meias palavras para nenhum bom entendedor. me conforto acreditando que fracassei diante de uma situação em que eram exigidas perícia e agudeza para me comunicar veladamente bem, de modo amistoso e sedutor, sem me privar a chance de um próximo passo mais ofertante e lascivo; a verdade, talvez mais dura, é que, por mais ponderado e eloquente eu pudesse ter sido, não haveria bom desfecho qualquer fosse o cenário. ainda assim, racionalizo: mal-entendidos fundamentais da linguagem ou erro de cálculo entre a pertinência e a (falta de) intimidade? minha sinceridade não deveria servir de pretextos para não ditos de sua parte; esperava alguma reciprocidade minimamente à altura, nem que fosse para uma recusa (qualquer recusa), seca ou úmida, gentil ou cortante. você opta pelo descuido, o que é pouco inédito. cada vez que seu silêncio me alcança, seu desinteresse se faz ouvir de forma mais nítida. minha insistência em escrever também me produz uma vergonha que lamento sentir: com alguma honestidade consigo mesmo, você me liberaria desses ecos. poucas palavras serviriam, um "não" serviria. qualquer recusa.
retomar contato por meio do canal haveria de ser ainda uma surpresa, não fosse o encaminhamento dos desafetos e ressentimentos mobilizados por esse desrecomeço. sinto que agi de má-fé com você ao ousar alguma resposta à sua tentativa de conversa comigo, uma vez eu não me apresentar frontalmente, rosto posto. dizer-se "mais preparado" diante da minha aparição, eu vibrando pela oportunidade de alguma palavra após ter perdido o timing do contato pregresso, uma voz que invento para pretender resumir uma situação decorrida por uma escolha sua de não responder e, portanto, sumir. a surpresa é seu gesto de trazer para si a responsabilidade de ter entendido mal minha mensagem, uma consideração tardia, obviamente contingente ao constrangimento de falar comigo, o indesejado. a pouca capacidade de me administrar frente a algo que me parecia decisivo não se reatualizava: o que me cabia era ler a situação como uma despedida às avessas, em que novamente se prometia "conversar melhor" num "encontro na próxima vinda", sabendo de antemão que nada prevaleceria mais do que o esquecimento tácito, a desobrigação indiscreta, o bloqueio preventivo. dois enganos fazem dois enganadores?
ao fim e ao cabo, o que me fica é esse sentimento muito doloroso de não ser merecedor da alegria da rejeição, em que constato que não valho a palavra ou a amizade, situando-me como alguém desimportante apesar do passado e descartável como mais um qualquer. o penoso não é lidar com essa suscetibilidade ao desencontro e à mágoa que os nossos critérios impõem a cada relação, mas sim com a pouca honestidade em relação ao outro, o descaso com a recusa libertadora, aquela que generosamente delimita e carinhosamente situa os afetos em sua devida dimensão. na ausência da dádiva, os fantasmas se agigantam, o desamparo beira o insuportável, quedas anteriores se repetem e se acumulam à nova queda, e uma crise evitável se faz como consequência de algum capricho inconsciente seu (espero que, apesar de egoísta, pouco consciente de si). meu trunfo: a fatalidade está logo ali: no dia do caçador, você inevitavelmente será a caça. apesar dos votos ressentidos, vive-se à pele, e a solidão, apesar de serem muitos os homens possíveis, é nossa companhia perene. salvo o destino, haja sorte para nós na empresa amorosa. sigamos em paz, mas armados. sem o azar de nos redesconhecermos novamente.
3 de outubro de 2024
morituri mortuis
instigado pelo cotidiano
o trajeto coincidindo
decisão ingênua: uma visita
como quem por vida sabe
espontaneamente o endereço
de onde estão os da família
qual memória resta dos que estão
entediados e sem ser como costumavam
capazes quando muito de assombros?
qual memória: não conseguir
como quem esquece que se esquece
achar onde (onde?) estão (estão?)
17 de setembro de 2024
sii-d
a barriga se revira
em escrita de um código:
prova da divina ira?
feto inventado? genótipo?
trato não definitivo,
loteria de saúde...
intestino, falo a si,
sindrômico! ai! ajude!
ei-lo... cobra flamejante,
amarronzada e rubra!
vem rastejando e malsã
a se queimar toda em curva:
sibilando dor e fel,
espasmódica se faz
contra tudo frente ao céu,
rastros, encalços a mais –
apanha do pé o suco!
limão, laranja, caju:
é santa: a tapioca!
é santo o milho: cuscuz!
quando chegam as visitas
(dedos, dildos, beijos, membros),
confia-se no psyllium:
à porta a surpresa dentro?
blíster de loperamida...
já dormir a cobra má!
restituir a si vida!
até que... cólica? já?
guarda para si mistério
a lhe ser de calma e cura:
brometo de pinavério:
brando fogo, fezes duras!
20 de agosto de 2024
"[...]
Gostava agora de poder julgar que a Primavera é gente
Para poder supor que ela choraria,
Vendo que perdera o seu único amigo.
[...]
Há novas flores, novas folhas verdes.
Há outros dias suaves.
Nada torna, nada se repete, porque tudo é real."
(Alberto Caeiro, "Quando tornar a vir a Primavera")
ainda que se repitam ciclicamente
os fatos são à revelia de si mesmos
sempre torna novo cada acontecimento
nexos e sentidos são artifícios
contra aquilo que impera renovado
alheio à verdade e à história
não há choro da primavera semelhada
à gente (o caçador caça a si mesmo
à espreita dos farfalhares da imaginação
a caça ignora seus dias suaves) no entanto
diante de novas flores e novas folhas verdes
chora-se – e a ausência do amigo se refaz
2 de agosto de 2024
os dedos apertam a si:
pausa diante do salto
baque surdo adiado
busca finda enfim
ação mórbida alguma:
um poema serve para
quedar-se sem ruídos
muito higienicamente
letras se aproximam:
numa página branca
clausura ou expansão
cortam onde não falo
visão sem percepção:
sideração e luz
o corpo retalhado
dor precedendo o sono
13 de julho de 2024
25 de junho de 2024
vovô bartô
acordar um para dormir outro:
fazer a cama para que se faça
o sono de um contra o de outro
dosando calor e contato durante
a noite de vômitos rotineiros ou
de latidos dos cachorros
espreitados pelo portão da casa
até a hora do "vamos entrar?"
eis a companhia tornada hábito
conquistado por estima e cobertor
ou por semelhança de afetos em que
a decadência se soma à idade de um
mais a infelicidade comum de outro
da janela avistamos o céu estrelado
ou a luz clara do quintal da vizinha
presos à cortina para nosso descanso
[.......................................................]
dorme enrodilhado sobre si
as patas dianteiras como travesseiro
perninhas magras sob a cabeça
rabo recolhido e servindo de venda
estremecem em seu sono os bigodes
rápidos tremores pelo corpo
longos miados de boca fechada –
com que sonha o gato?
(correndo da seringa de ciclosporina
gatos da rua invadindo seu pedaço
insetos gigantescos sombreando paredes
cachorrões rosnando e uivando
enroscando-se nos panos com que se tampa
solidão em meio aos corredores da casa
tigela de ração cheia de formigas
água velha suja de plumas)
(à porta do supermercado
um mendigo de pernas amputadas
rastejando imundo atrás de mim
cola-se à minha perna esquerda
me apalpa buscando por moedas
e por fim morde violento meu pé
vingativo diante da minha mentira
de dizer que não tinha trocado)
23 de maio de 2024
1 de maio de 2024
o terreno foi comprado por um ricaço da cidade; o espólio, partilhado entre os filhos. será mais um empreendimento residencial para a classe média (espaço kids, área gourmet, academia, ampla varanda, cozinha conjugada à sala, banheiro social, suítes enormes, móveis planejados, porcelanato a rodo e, muito separado e bem à mineira, quarto de empregada). terá um nome aburguesado e estrangeiro, grand ou ville alguma coisa. no hall de entrada, próximo aos elevadores, poltronas desconfortáveis e uma imagem de nossa senhora de fátima sobre um aparador muito moderno. as garagens estarão repletas de hilux cabine dupla de homens tristes que usam chapéus de couro e camisas xadrezadas e acordam às quatro da manhã. no entanto, ainda não. ainda:
o passeio em mosaico de cacos de ladrilhos e restos de revestimento formando linhas mais ou menos retas preenchidas por sequências desordenadas, com matinhos já crescidos entre a rua, a calçada e a fachada. à direita, os portões brancos mais uma placa enferrujada, como um tapume, onde era a garagem. em toda sua extensão restante, a grade alta e branca, com espetos nas pontas. vê-se, através, a natureza escondendo a história: mato rasteiro persistente, galhos-entulhos de nenhuma árvore, insetos perfurando o solo ou traçando no ar o destino, uma hortinha ao fundo (banana, mandioca) próxima a tijolos, montes de areia, tábuas respingadas e andaimes frágeis. no portão da grade, mistério: uma campainha e uma caixa de correspondências. mistério:
campainha... a quem se avisa a chegada? quem chegaria, senão por meio da rememoração, do passadismo, da nostalgia? há – afeto anguloso – saudade? quem atenderia o chamado do interruptor, as palmas, já muito mortos e espalhados no que fica, mesmo sem se saber, entre filhos, netos, parentes? não há mesa posta, café algum servido, engradado de mineirinho para ninguém. se tocada, a campainha faria vibrar, em algum lugar entre o esquecimento e a urgência, um som típico. aquele, irrecuperável. o que, onde chamaria este som? é possível ouvi-lo fora da ficção, da alucinação, do sonho?
caixa de correspondências... quem ousaria entregar à caixa correspondências, na ausência de uma casa? o funcionário da prefeitura kafkiano, com o carnê de imposto? uma jovem panfleteira explorada, acostumada à rua dos bobos, número zero? quem recolhe os encartes-lixos distribuídos pelo comércio local? o proprietário rico do lote, um amigo de sua família? mais, quem escreveria cartas de aflição ou ternura, dando e pedindo notícias? qual o endereço definitivo capaz de fazer chegar a mensagem, além da oração pouco recíproca e do monólogo sem presença? o que teria a ser dito, além da partilha estendida das misérias da vida, ela mesma nunca celebrada a contento?
restam: incompreensão e silêncio, corpo suado de uma tarde de caminhada pela região, dor no peito e garganta seca (na volta da escola: "vó, só vim rapidinho beber água e ver a senhora! o vô já deitou?". acabava ficando para o almoço), travo na boca, ponto aquoso no canto do olho direito.
29 de março de 2024
"[...]
Se esse é o seu tempo, quando havia el[e] de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
[...]"
(Alberto Caeiro, "Quando vier a Primavera")
mesmo que não venha já ou jamais
todas as horas rentes ao corpo
não resumem as possibilidades
do que foi ou será ou poderia ser
fazem mais com que desejos nasçam
em exercícios cesarianos de espera
da palavra sempre cai a verdade
ousar suster o espanto diante de si
revela ainda que dolorosamente
o segredo – à mostra se torna sorte
o mundo posto ao gosto do que é real e certo
mesmo que ele não venha já ou jamais
24 de março de 2024
à noite, toda languidez e vapores, desce do santuário como montada em fumaças e fogos de quermesse: cedendo da preguiça de sua santidade, porta-se altiva, translúcida, serena: já cansada do ritornelo mendicante e fervoroso dos fiéis, limpa calmamente os pés fumegantes no paninho da soleira da igreja, ajeita bem asseado o halo em torno de si para os desígnios de ser luz e luzir. ao pai um pai-nosso, à mãe uma ave-maria; ao filho, por maior proximidade na lida diária dos encaminhamentos espirituais, pede candura e fogo, como o saído dos candeeiros que lhe esquentam os pés no altar. procura ao redor pela antiquíssima bandeja que compõe sua aparição dramatúrgica, fixada em sua própria iconografia; um cachorro vadio, frequentador assíduo das missas e velho conhecido, alcança-a. descansa as mãos sobre o próprio rosto, dedos espalmados sobre a testa, um discreto estremecimento seguido de um lampejo seguido de um silêncio. solenemente e com discrição, depõe os olhos sobre o tabuleiro de prata e vai, missionária, às rondas.
afastada da calma, inflama-se pelo bordão das orações que denunciam a destruição dos bons lares cristãos e perambula atrás dos pecados e dos pecadores, incendiada e em polvorosa mais ainda pelo que testemunha arder à porta de sua casa: terríveis visões: uns pares e ímpares que, desviando-se do rito virtuoso do matrimônio e da lei imaculada dos sexos, vão-se enroscar não só antes da bênção divina, mas contrários à tábua que versa para cada homem, uma mulher, para cada mulher, um homem. contra o gênesis e os cânticos dos cânticos – cânones prescritores do amor –, contra os encaixes anatômicos do corpo humano – cuja natureza é barro moldado e animado pelas mãos e pelo sopro do grande oleiro –, contra a vontade de deus – que assina tudo que há de belo e bom –, jaz logo ali, onde o rebanho limpa os pés, o mal em flor! longe do olhar da catolicíssima sociedade patrocinense e à vista de sua santidade, homens veem homens, mulheres veem mulheres, às duplas ou mais – horror! libertinagem! – em suas escadas! blasfêmia, heresia, profanação! pecado-mor desenhado por vícios e escuridões ao rés de seu lume! pobrezinhas das beatas que se emporcalham ajoelhadas, rentes ao rastro do fel dos banidos de sodoma e dos filhos de madalena, no 13 de dezembro... a elas, velas a mais como holofotes de limpeza e salvação; a eles, centelhas cegantes, clarões tempestuosos, chamas impiedosas, santa labareda, verdugos mais verdugos!
ó, santa, tende misericórdia! já digo que, chegada a minha vez de ir às escadarias, rezei e pedi licença antes de me ajoelhar para conhecer a parte do corpo de cristo que não é consagrada na hóstia. também como vós, adoro a um só deus verdadeiro e a ele prometi amor e fidelidade: deus vivo, rígido, encarnadíssimo! e intumescido, úmido, branco, viscoso... protetora da visão, cobri vossos olhos, tampai vossa argêntea tábua com aquele tão sincero paninho! eis a verdadeira natureza humana: este trapo a vossos pés! perdoai e rogai por nós! ó, santa, vós que preferistes deixar que os vossos olhos fossem vazados e arrancados em vez de negar a fé e conspurcar vossa alma, desconheceis as delícias do corpo em sua esplendorosa sujeira e miséria? a escuta das volúpias não vos ilumina o pensamento? dos que clamam por perdão, o constrangimento mais ardente vem da alegria prazenteira da união, santa, sejam homens e mulheres que se enamoram de seus semelhantes ou não! sóis nascem a cada súplica e prece na grande noite que é a vida, não é direito vossa luz eclipsar as naturezas à risca da cartilha sagrada, cheia de proibições prévias e perdões programáticos; são e somos filhos da mesma olaria, feitos à mesma mão paterna! clemência! deixai gozar!
deus, com um milagre extraordinário, devolveu a vós outros dois olhos sãos e perfeitos para recompensar vossas virtude e fé e vos constituiu protetora contra as doenças oculares. tamanha é a generosidade do criador, fazer reaver à criatura vosso órgão visionário, tornando-vos padroeira! reconhecei a sabedoria e o gesto da providência e apagai vosso fogo punitivo! santa, eu recorro a vós para que protejais minhas vistas dos encantos enganosos dos músculos tonificados, protejais minhas visitas noturnas à vossa casa e protejais a mim dos riscos das doenças venéreas, pois o látex não traz resguardo e paz plenos. ó, santa, conservai a luz dos meus olhos para que eu possa ver as belezas da criação, barro vivo da semelhada imagem viril e máscula de vosso pai... conservai também os olhos de minha alma, a fé, pela qual posso conhecer o meu deus sexuado, compreender seus ensinamentos da lei e do desejo, desembaraçar-me de seu amor ambíguo e nunca errar o caminho que me conduzirá onde vós, santa, vos encontrais: à soleira, em companhia dos fiéis e dos anjos e do pai e do filho e do espírito santo.
conservai minha fé, santa luzia! santa luzia, rogai por nós, desgarrados, enroscados, deitados. amém!